de Jaime Carlos Patias *
Qual o papel das religiões na busca da espiritualidade e humanização do mundo contemporâneo? Quais valores ajudariam a humanidade a construir uma ética universal? Que mudanças ocorreram no interior do judaísmo? Estas e outras questões são abordadas pelo rabino Alexandre Leone nesta entrevista concedida em sua residência, em São Paulo. Doutor em Cultura Judaica pela USP, Leone é estudioso do pensamento judaico medieval e moderno com interesse no aspecto ético e humanizante, onde a tradição se une a uma criativa busca pela espiritualidade. Desde 2005 atua como rabino do Centro Cultural e Social Bnei Chalutzim, entidade que serve à comunidade judaica de Alphaville, Granja Viana e região, em São Paulo. Convidado pela Confederação Israelita do Brasil, Alexandre representou a comunidade judaica brasileira na visita que o papa Bento XVI fez em janeiro de 2010 à Grande Sinagoga de Roma, na Itália.
Quais seriam as principais correntes ou tendências no judaísmo hoje?
Em primeiro lugar, os judeus não são uma igreja, mas um povo cuja unidade básica são as famílias que formam as comunidades. Estas são associações de famílias que se unem por diversos motivos. Por exemplo, grupos de migrantes da Alemanha, da Síria, da Polônia, que pela origem, quando chegaram ao Brasil criaram elo entre as pessoas. Ou mesmo judeus que seguem uma linha mais ortodoxa ou liberal. As correntes do judaísmo moderno nasceram no século 19 ou 20. Cada uma à sua maneira são herdeiras do judaísmo medieval. Antes disso vigorava outra situação no mundo judaico. No século 19, temos um fenômeno denominado Emancipação. Influenciados pelas Revoluções Francesa e Americana, os judeus nos seus países passaram a ser considerados cidadãos com direitos e deveres iguais a qualquer cidadão. Antes, eram considerados um povo à parte. Com isso eles enfrentavam uma série de restrições no emprego, moradia, impostos etc. Ao mesmo tempo gozavam de uma autonomia maior. O processo de emancipação, que teve diferentes ritmos em países diferentes, durou quase todo o século 19 e com isso passaram a participar da vida social. Entre um grupo judaico mais urbanizado e modernizante, temos uma corrente denominada reforma, que pretende um judaísmo mais condizente com a sociedade moderna. Os movimentos reformistas em alguns lugares são chamados liberais. Há variações dentro dessa corrente. A reforma européia é mais tradicional, enquanto que a americana foi mais radical. Ambas se caracterizam por buscar afrouxar uma série de observâncias religiosas. Em oposição a isso apareceu a ortodoxia, aqueles que acham ter uma opinião correta. Apareceu também uma ultra-ortodoxia. São os que se vestem de preto, usam a barba comprida, e cobrem a cabeça com chapéus. No início do século 20 pensava-se que a ultra-ortodoxia era uma espécie de corrente fóssil fadada a acabar, mas ela sobreviveu. A partir dos anos 60 muitos se viram atraídos por ela devido à busca pelo exótico e pela fuga do mundo moderno. Essa corrente cresceu em Israel e no mundo inteiro. Alguns inclusive se tornaram até missionários no interior do judaísmo tentando ganhar membros. Assim esses grupos que representam o fundamentalismo judaico hoje são maiores do que eram nos anos 60 do século passado.
Mas, existe um meio termo...
Existe um grupo centrista do qual eu faço parte e que se distingue tanto da reforma quanto da ortodoxia, apesar de aceitar certas teses de ambas as partes. Na Europa foi chamado de corrente histórica. Nos Estados Unidos são os conservativos. Mas no final do século 20, esse grupo passou a se autodenominar “masorti” (os tradicionalistas) diferenciando-se do liberal, mas também do ortodoxo. Existe ainda nos Estados Unidos o reconstrucionismo e uma espécie de judaísmo New Age, algo espiritualista, ecológico. É a renovação judaica. Além disso, muitos judeus são chamados seculares, ou membros do judaísmo cultural que tem identificação mais nacional. Eles junto com a reforma moderada e a ortodoxia moderada são hoje o mainstream judaico.
A busca pela espiritualidade ou do re-encantamento no mundo contemporâneo, a que se deve?
Ela vem daquilo que Freud chamou de mal estar da civilização. Depois das grandes guerras, do holocausto, com o aparecimento da sociedade de consumo, temos uma reação geral, por um lado um reavivar de certa espiritualidade por outro o crescimento de grupos com ranço de preconceito e fundamentalismo muito grande. Quem diria nos anos 60 que o Brasil se tornaria um dos paises com maior população evangélica no mundo? Quem diria nos anos 70 que grupos de direita no mundo católico estariam tão fortes no início do século 21? Há 40 anos o fundamentalismo islâmico não existia. O movimento árabe era mais nacionalista, não era tão ligado à religiosidade. Isso tudo é uma reação ao secularismo, à crise da civilização moderna.
Existem judeus fora da cultura judaica?
Como os judeus se espalharam pelo mundo, o seu caráter se tornou multicultural e multiétnico. Em Israel é mais fácil reconhecer esse fenômeno. Nos Estados Unidos, grupos de negros se converteram ao judaísmo e fizeram um caminho para serem aceitos pelas comunidades judaicas como judeus. Temos também judeus orientais dos mais diversos grupos com características muito próprias. Alguns grupos de judeus vindo da Ásia, no Yemen, na Índia, por exemplo, muitas vezes são confundidos com muçulmanos. Temos judeus de países africanos. Na Etiópia foi descoberta uma comunidade inteira que não falava hebraico e usava como língua litúrgica o guez, a antiga língua etíope. A maioria migrou para Israel nos anos 80 e 90, e fez um caminho de integração. Os judeus da China praticamente desapareceram, mas algumas sobreviveram até quase o século 20.
Esse movimento provocou mudanças no interior do judaísmo?
As migrações de grupos judeus de vários países para as Américas, Israel, Oceania e para a Europa Ocidental provocou uma mudança na base lingüística, como nenhum povo no século 20 sofreu. Outro fenômeno foi o genocídio. Em 1939 havia 18 milhões de judeus. Hoje o número quase não chega a 15 milhões. Só no genocídio foram exterminados seis milhões, dentre os quais um milhão e meio de crianças. Com exceção das que eram separadas para pesquisas, as outras eram mortas. Isso significa que comunidades inteiras e modos de vida desapareceram. A integração se deu assim: no Brasil chegaram judeus da Síria, da Polônia, da Alemanha, do Marrocos no começo cada comunidade ficava fechada em si, mas com o tempo elas se integraram e também com a sociedade brasileira. Várias comunidade judaicas hoje são reunião de diásporas. No começo cada um ficou na sua, mas eles começam a se integrar e a casar entre si. Com isso já não temos mais aquele judaísmo que existia antes na Europa ou no Oriente Médio. Nos Estados Unidos acontece a mesma coisa, e principalmente em Israel. Lá o povo judeu se percebe como uma “micro” humanidade. Como o povo tem elementos multiculturais, temos uma forma nova. Ao mesmo tempo surgem outras culturas judaicas que antes não existiam. Por exemplo, o judeu argentino, o judeu americano, que é culturalmente muito definido e o judeu russo.
Há fenômenos novos dentro do judaísmo?
Outro fenômeno mais recente é o crescente número de pessoas nos países ocidentais que buscam a conversão ao judaísmo. Isso aconteceu na Colômbia com uma comunidade inteira (mostra uma reportagem da TV colombiana). Tudo começou com grupos messiânicos, cristãos evangélicos, que sem deixar de ser cristãos adotaram práticas judaicas e terminaram por se converter. No Brasil, em menor proporção, isso também acontece. Na Colômbia, de 50 comunidades messiânicas, sete abandonaram o cristianismo para assumir o judaísmo. Eles se aprofundaram no judaísmo estudando hebraico e seguindo a liturgia judaica. Convidaram um grupo de rabinos de Israel para formalizar a conversão massiva. É muito difícil afirmar que eles tenham descendência judia como alguns deles afirmam, mas essa lenda pessoal os moveu. Calcula-se que no Brasil, por exemplo, haja milhões de descendentes daqueles judeus que foram forçados a converter-se ao cristianismo em Portugal e que vieram ao Brasil durante o período colonial, os chamados marranos. Muitos são brasileiros comuns que de repente se descobrem descendentes de judeus. É um fenômeno antropológico, existencial e pessoal. Vemos aumentar no mundo o número de pessoas que buscam as comunidades judaicas para se converterem. No passado esse fenômeno se dava mais através do casamento inter-religioso. Ou então conversões de crianças, cujas mães não eram judias. Tenho aqui pedidos de muitas pessoas querendo se converter ao judaísmo.
Como é viver o judaísmo na sociedade de consumo hoje?
Dependendo da corrente a que pertence, o judeu vai encontrar dificuldades e caminhos diferentes. Como estou numa posição moderada busco um caminho do meio. Por um lado, o judeu quer participar da vida da sociedade moderna e por outro, quer preservar a tradição, mesmo sabendo que ela tem a sua evolução natural. Um judeu que queira viver como eu estou vivendo vai viver em dois calendários, o civil gregoriano e o judaico. Imagine conciliar na escola ou no emprego que sexta-feira à noite e sábado não se trabalha, ou que se deva respeitar os feriados judaicos? A sociedade contemporânea é hedonista, muito voltada ao prazer. Para viver uma vida de prática litúrgica, esse re-encantamento do mundo não é simples, porque precisa de uma disciplina. Imagine parar de trabalhar para rezar a liturgia das horas? Mesmo como rabino, vejo que é necessária uma autodisciplina constante e que para muitos é complicado.
E quanto à ética nos negócios a na política?
É muito mais fácil as pessoas adotarem práticas rituais do que práticas éticas. Então temos aquele sujeito que é super religioso, que anda de preto e observa as regras religiosas e ao mesmo tempo nos negócios não é tão correto assim.
Essa prática seria um desafio enfrentado por todas as religiões?
Essa separação entre o que é religioso do que não é, em si mesmo, já é uma separação moderna. Alguns vão responder a essa separação com a rejeição fundamentalista, e conservadora da vida moderna. Então impõem regras, não têm televisão em casa, restringem a internet etc. Isso também tem seu viés político. As pessoas passam a apoiar grupos e partidos políticos que os representam, e que querem um Estado de Israel religioso. Um estado religioso, judaico, muçulmano, cristão, etc, é a pior ditadura possível, é a ditadura das mentes, porque para manter esse tipo de Estado precisa controlar os costumes. Por outro lado temos uma espiritualidade que quer preservar as tradições, mas ao mesmo tempo não quer se isolar. Isso não vai resolver. Os problemas humanos são tão grandes e globais que é preciso olhar a realidade de frente. Isso requer um caminho não fundamentalista, requer diálogo.
No mundo moderno quais seriam os valores que ajudariam a humanidade a construir uma ética universal?
Abraão Joshua Heschel (1907–1972) entende que os religiosos têm a tarefa de recolocar o humanismo no centro do mundo. Não aquele humanismo aintirreligioso, mas um humanismo que tem seu cerne em Deus.Heschel encontra isso na idéia bíblica de que o ser humano é a imagem de Deus entendido como uma ordem. Deus não nos deixou nenhum símbolo dele. Ele nos pede para que nós sejamos os símbolos. A pessoa se torna símbolo de Deus pela prática ética que é uma prática de humanização reconhecendo o humano no outro. Uma prática de cuidar das questões que de fato são relevantes. Outra frase importante de Heschel é “nenhuma religião é uma ilha”. As religiões precisam umas das outras.
As religiões e igrejas às vezes acabam se perdendo no secundário (regras, leis, dogmas) esquecendo-se do essencial?
Toda a experiência religiosa é pautada por um modo de vida. No judaísmo existe uma ideia de que se a lei é o corpo, a fé é a alma. A lei sozinha é um corpo sem vida, um cadáver. A fé sem ações no mundo é um fantasma, porque não se corporificou. Corpo vivo é constituído pelos dois lados. Ou seja, a prática religiosa não existe em si mesma.
Emmanuel Lévinas (1906 – 1995) no seu texto “Uma religião de adultos”, fala do diálogo inter-religioso, da voz de Israel e da religião sacramental, aquela que é totalmente voltada para o ritual. Lévinas afirma que a religião sacramental vai ser sempre negada pelo ateísmo. Nesse contexto o ateísmo é a negação de que o ritual tenha o poder mágico. Para ele, ambos, o ateísmo e a religião sacramental devem ser superados pelo monoteísmo. É uma superação no sentido dialético que conserva alguma coisa dos dois, mas ao mesmo tempo, os ultrapassa. A religião dos adultos é aquela centrada no ato ético. O ato religioso por excelência não é o ritual, que também tem sua função, mas o ato ético. Lévinas a essência da ética não são as regras, mas da a responsabilidade pessoal que fruto do reconhecimento dos outros diante de mim. No momento em que estou diante do outro que é diferente, eu já me coloquei numa situação de recebê-lo para entrar em diálogo. Lévinas tem uma frase fantástica: “A ética não é o corolário da visão de Deus, mas a própria visão de Deus” Assim a ética é uma ótica. Eu só consigo entrar em relação com o Deus do monoteísmo, pela ética. Segundo Heschel, Deus não está preocupado com questões teológicas, mas com o pobre, a viúva e o órfão. Enquanto o filósofo nos leva às mansões eternas da mente, os profetas nos levam aos cortiços de Jerusalém. Trata-se de amar a quem Deus ama. Deus demonstra uma grande preocupação com o ser humano desse modo nós devemos também demonstrar para fazer sua obra. Para aquela que vê santidade na vida ética o sublime é o exemplo de vida. Veja a doutora Zilda Arns, já é uma santa. Ela vai ao Haiti e morre naquela situação. O verdadeiro milagre já aconteceu. É o próprio exemplo de vida.
Como o judaísmo interpreta hoje o holocausto?
Os que sobreviveram, foi por causa da resistência que era uma forma de resiliência. Isso na dimensão individual. Em nível coletivo, podemos distinguir pelo menos três discursos judaicos com relação ao holocausto: a) Os nacionalistas afirmam que por conta disso, precisamos de um Estado de Israel muito forte; b) Os ultra-ortodoxos dizem: aconteceu o holocausto, alguém pecou para que Deus tivesse permitido esse tipo de coisa. Para mim esse discurso é imoral, pois desculpa os carrascos e coloca Deus como carrasco no final das contas. c) Há um terceiro discurso na fala de Heshel e Lévinas: o holocausto foi um crime contra a humanidade, ou seja, não é para ser visto somente a partir de uma ótica judaica, mas universal. Mesmo que esse discurso não explique porque o holocausto aconteceu, ele reconhece que o genocídio é um sintoma de processo de desumanização que não parou depois que a Alemanha foi derrotada. Continua no “american way of life”, na sociedade do espetáculo. A resposta religiosa é estar do lado da população desprotegida. No século XIX eram os judeus, nos anos 60 os negros, os povos indígenas, os vietnamitas. Ao estar do lado deles, eu estou fazendo aquilo que Deus quer que eu faça. Esse discurso representa a crítica da modernidade por ela não ter trazido o humanismo que prometeu e revela a fonte espiritual das nossas tradições.
Jaime Carlos Patias, imc, é diretor da revista Missões. Entrevista publicada na Edição de maio 2010- N. 4- revista Missões. www.revistamissoes.org.br
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