Quarta-feira,
23 de janeiro de 2013 - 15h57min
por A reportagem é publicada pela BBC Brasil.
Sob uma forte polêmica,
começa a funcionar nesta segunda-feira um acordo entre autoridades de São Paulo
que tornará mais ágil a internação forçada de usuários de crack em clínicas de desintoxicação.
Especialistas
ouvidos pela BBC Brasil disseram
esperar que a ação não se revele mais uma operação repressiva como já ocorreu
no passado na Cracolândia - com o intuito aparente de
apenas tirar os dependentes de drogas do centro da cidade, sem uma forma
efetiva de tratamento.
A
ação é baseada em um termo de cooperação técnica assinado pelo governo do
Estado, Tribunal de Justiça,Ministério
Público e OAB (Ordem
dos Advogados do Brasil).
Ela
cria uma equipe integrada por médicos, assistentes sociais e juízes sediados no Cratod (Centro
de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas), no Parque da Luz, próximo a
região da Cracolândia.
Segundo
o desembargador Antônio Carlos Malheiros -
responsável pela parte do TJ na
parceria - os dependentes químicos serão levados ao local a fim de passarem por
avaliação médica. Caso o usuário necessite de uma internação e se recuse a
submeter-se a ela, promotores pedirão a um juiz de plantão que decida sobre uma
internação compulsória.
Hoje
a lei brasileira prevê três tipos de internação: voluntária, involuntária
(por determinação do médico e familiares, se o paciente não tiver condições de
decidir) e compulsória (por decisão judicial).
Por
ordem do juiz, os dependentes de crack que necessitarem serão imediatamente
levados contra sua vontade para uma clínica especializada conveniada com o o
governo. Todo o processo deve acontecer em poucas horas.
Ao
anunciar a parceria na semana retrasada, o governador Geraldo
Alckmin afirmou que o Estado dispõe de aproximadamente 700
leitos especializados para atender os dependentes químicos, a maioria em
clínicas conveniadas.
Convencimento
Malheiros disse
que passou mais de seis meses visitando diariamente a Cracolândia para
estudar o assunto. Ele diz acreditar que a solução para o problema do crack em
São Paulo não é uma política higienista, de recolhimento em massa.
Para
ele, a internação compulsória dos dependentes é necessária, mas deve ser usada
apenas como "um exceção a regra".
O
magistrado afirmou à BBC Brasil que
estratégias do governo usadas no ano anterior - nas quais a Polícia Militar
dispersou usuários de drogas do centro - não são as mais adequadas.
O
ponto que mais preocupa especialistas é como serão feitas as abordagens aos
dependentes químicos naCracolândia a
partir desta segunda-feira: por convencimento ou coerção.
Segundo Malheiros,
a ideia da parceria é que a PM esteja
presente, mas não participe das abordagens - que devem ser feitas apenas por
assistentes sociais e agentes de saúde.
Porém
não está claro como usuários contrários à própria internação serão levados
espontaneamente para a avaliação médica.
Malheiros afirmou
que alguns familiares estão se organizando para convencer e levar seus parentes
usuários de crack ao Cratod.
Segundo
o magistrado, o tempo de internação forçada determinado pelo juiz será de
acordo com a orientação dos médicos.
Leia
abaixo as opiniões dos médicos psiquiatras Ronaldo
Laranjeira e Dartiu Xavier da
Silveira, ambos da Unifesp(Universidade
Federal de São Paulo) sobre o tema da internação forçada:
Contra
Para o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira,
a internação forçada é negativa, de maneira geral. Ela se justifica apenas em
aproximadamente 5% dos casos, quando o dependente de crack também apresenta um
problema mental grave. Segundo ele, o tratamento de usuários de drogas mais
efetivo é voluntário e envolve visitas regulares a clínicas e centros
especializados.
Silveira é
um renomado professor da Unifesp (Universidade
Federal de São Paulo), onde coordena o Programa
de Orientação e Atendimento a Dependentes.
Segundo
ele, há situações específicas, do ponto de vista médico, nas quais se justifica
a internação involuntária. Isso acontece quando o paciente apresenta psicose
(delírios de perseguição e alucinações) ou risco iminente de suicídio.
"Essa
pessoa pode não ter um juízo crítico da realidade e então cometer um absurdo,
mas não é o crack que faz isso com ele, é o problema mental", disse.
Ele
afirmou ainda que, embora os estudos sobre o tema sejam controversos, a taxa de
recuperação dos dependentes é maior em um contexto ambulatorial do que no de
uma internação.
"É
relativamente fácil alguém ficar longe da droga quando está internado, isolado,
em condições ideais. O difícil é se manter longe da droga quando você volta
para o convívio com a família, com o emprego, com os problemas", disse.
"A
consequência é que a grande maioria recai no primeiro mês depois da internação.
Além do custo ser muito maior que um tratamento ambulatorial, a eficácia é
menor".
Ele
afirmou que a população de rua pode ser tratada de forma ambulatorial. Essa
abordagem já é usada com frequentadores da Cracolândia.
"Isso já é empregado de uma forma muito bem feita", disse.
O
psiquiatra defende ainda que sejam oferecidos aos usuários o benefício das
moradias assistidas - chamadas no exterior de "halfway houses", hoje
ainda insuficientes no Estado -, onde eles receberiam além do teto,
acompanhamento médico e ajuda para conseguir emprego e se restabelecer
socialmente.
Sobre
as críticas de que o número de dependentes na região não diminui ao longo dos
anos, Silveira explica
que o problema da Cracolândia é
majoritariamente social e não médico.
"A
condição de miséria da população de rua é decorrência de uma omissão do Estado,
da falta de acesso a moradia, à saúde, à educação. O estado de vulnerabilidade
em que eles se encontram os torna suscetíveis a se tornar dependentes químicos,
mas a droga é consequência e não causa".
Segundo
ele, frequentemente as autoridades fazem operações massivas na Cracolândia nas
quais prevalece o caráter agressivo e repressivo em detrimento do tratamento
por meio do convencimento. Ele citou como exemplo ações ocorridas no início do
ano passado - onde policiais militares apenas espalharam os frequentadores da Cracolândiapelo
centro da cidade.
"(Essas
medidas) destroem anos de trabalho de confiança estabelecida entre o agente de
saúde e o morador de rua".
"A
gente precisa começar a dar a essa população condições mínimas de cidadania, de
qualidade de vida. Isso é uma coisa que o Estado não quer encarar. (A atual
ação) me parece mais uma tentativa de tomar uma medida com um impacto
midiático, político".
"Mas
a gente sabe que isso não vai resolver o problema. Um tipo de proposição dessa
ordem é algo que não seria aceito em um país de primeiro mundo".
A favor
Para
o psiquiatra Ronaldo Laranjeira,
internar de forma compulsória moradores de rua extremamente dependentes de
crack é um "ato de solidariedade". Segundo ele, a maioria das pessoas
que chegam contra sua vontade em clínicas de tratamento acabam aderindo
voluntariamente ao tratamento após os primeiros dias de internação.
Laranjeira é
professor da Unifesp (Universidade
Federal de São Paulo) e uma das maiores autoridades no assunto no país. Ele se
diz favorável à facilitação das internações compulsórias em casos extremos,
desde que acompanhada de uma linha especial de cuidados ao paciente após sua
desintoxicação inicial.
Ou
seja, apenas em casos realmente necessários, sem a adoção de uma abordagem
simplista ou higienista, para ocultar um "problema" urbano.
"Você
tem que cuidar daquelas pessoas que estão desmaiadas na rua (devido ao uso
abusivo do crack). Isso é um ato de solidariedade e não cárcere privado",
disse.
Segundo Laranjeira,
a maioria dos países democráticos já tem mecanismos para viabilizar a
internação compulsória. "Na Suécia, 30% do tratamento psiquiátrico é
coercitivo. Os Estados Unidos têm pesquisas que mostram a eficiência desse
tratamento e a classe média no Brasil já vem fazendo isso há muito tempo
também".
Segundo
ele, a internação por ordem judicial está prevista na lei brasileira e já é
bastante comum em São Paulo, mesmo antes do início da atual parceria anunciada
pelo governo.
Dos
cerca de 100 leitos de uma clínica chefiada por Laranjeira no
interior do Estado, 50% são ocupados por pessoas internadas por ordem judicial.
Ele diz acreditar que a tendência se repete em toda a rede especializada no
tratamento de dependentes químicos.
"Toda
semana eu faço uma ou duas internações (forçadas) na minha clínica. Mais de 90%
delas em uma semana se tornam voluntárias", disse.
Segundo Laranjeira,
a pessoa que necessita de uma internação à força chega à clínica em uma
situação grave, na qual é praticamente incapaz de discernir o que é melhor para
ela. Quando a crise inicial passa, ela começa a ter condições de analisar a
situação e acaba concordando com o tratamento.
De
acordo com o psiquiatra, o governo de São Paulo já deu um passo significativo
quando começou a abrir leitos (30 atualmente) para internação de mulheres
grávidas usuárias de crack. Em sua opinião, nesses casos a internação
involuntária é muito necessária, pois não envolve apenas a saúde da mãe, mas
também a do bebê.
De
acordo com Laranjeira, quando uma
pessoa é internada compulsoriamente por estar em um estado emergencial de
dependência, seu período médio de permanência na clínica não deve ultrapassar
dois meses.
Uma
vez estabilizado, o paciente deve ser submetido a uma fase de tratamento
ambulatorial - frequentando uma clínica especializada uma ou duas vezes por
semana, para receber acompanhamento médico, psicológico e de assistentes
sociais.
No
caso dos moradores de rua - que não podem passar por esse tratamento enquanto
hospedados na casa de familiares - ele defende o uso de moradias assistidas.
Elas
são necessárias, pois é comum que o usuário de crack que acaba numa cracolândia
não possua mais emprego, bens e esteja afastado da família.
Nessas
moradias, o usuário pode entrar ou sair livremente e recebe apoio do Estado
para reconstruir sua vida - ao mesmo tempo em que tem a dependência química
monitorada.